Em defesa das planícies de maré e da pesca.

Foto: Acervo Institucional. Agosto de 2020. A imagem registra um momento descontraído dos pescadores Cesar “Guma” e Jeison despescando belos exemplares de parati. Ao fundo o fantástico Largo do Caneú, piscoso e produtivo, ajuda a lembrar que em meio ao porto, temos belas e importantes áreas de pesca.

Há 15 anos acompanhamos atentamente os processos de licenciamento ambiental que correm na Baixada Santista.

Via de regra é um procedimento burocrático com centenas a milhares de folhas de papel onde as consultorias contratadas pelos projetos que buscam implantar , produzem desenfreadamente conteúdos de modo a não permitir que a sociedade, o Ministério Público e as organizações processem essas informações. A estratégia deles é encher vários potes de água ao mesmo tempo, de modo a não permitir que a gente possa esvaziá-los a tempo antes de sair a Licença Ambiental. Tarefa difícil pois conta com centenas de técnicos pagos pelos projetos contra alguns gatos pingados que junto com os afetados e atingidos, pedindo acesso à informação nos órgãos, possam contra argumentar a tempo, sem qualquer dotação orçamentária pra isso.

Na esteira do processo em movimento e a toque de caixa, a CETESB (agência ambiental do Estado de São Paulo) e o IBAMA, despacham dezenas e dezenas de pareceres que vão conferindo a viabilidade do empreendimento, pois como o próprio nome diz é um licenciamento. É sempre assim! Um rito burocrático. Para efeitos práticos, o caso em tela, é um porto flutuante para processar gás que busca usar uma área de espelho d’água com grande importância pesqueira e ecológica por consequência (ou vice-versa) localizado no estuário santista-vicentino. As áreas em terra já são escassas e a ideia agora é usar o espelho d’água.

Mas nesse caso, teve uma novidade que já apontamos anteriormente através das nossas manifestações formais junto aos órgãos, à presidência da CETESB e Ouvidoria. A CETESB exigiu desde a emissão da Licença Previa (LP) em 2019, que a empresa fizesse um levantamento de toda a cadeia produtiva que seria afetada com a obra, e para isso, há que se fazer algo jamais feito em outros licenciamentos. A pesca não é somente o ato de pescar, portanto, se faz necessário cumprir esse levantamento bem além que o tradicionalmente feito por outras empresas, por ser essa uma nova exigência, criada, a partir da demanda formal do MARAMAR. Acreditamos que ao fortalecer os órgãos ambientais públicos, fortalecemos a governança sobre sobre os projetos.

Um trabalho nosso executado apontou caminhos para como isso poderia ser feito, permitindo através dessa nossa proposta, compreender a realidade pesqueira que o empreendimento irá afetar. Com essa compreensão, sem dúvida, fica mais fácil avaliar e ver se dá para seguir, ou recuar e abandonar. Ocorre que nada disso tem sido feito, daí o motivo da indignação agora não mais somente nossa, mas de todo o setor pesqueiro e coletivos da pesca artesanal.

A dragagem necessária para o projeto de parte da planície de maré (que denomino aqui de manguezais sem bosques) irá suspender uma pluma de lama que afetará e afugentará espécies para então dar lugar a esse futuro porto, reduzindo a área de forma relevante desse baixio lamoso denominado Largo do Caneú. Do outro lado da Ilha de Bagres, um ecossistema análogo, conhecido como Largo Santa Rita tambem está ameaçado por futuros projetos portuários. Ocorre que essas áreas de planícies de maré de fantástica produtividade biológica (raso, com sedimento rico e com muita luz) merece ser visto com atenção pela CETESB. O Decreto nº 5.300/04 que regulamentou a Lei Nacional do Gerenciamento Costeiro (Lei nº 7.661/88) traz de forma clara e inequívoca que toda supressão de “habitat” costeiro deve ser reposta com “no mínimo uma área equivalente na mesma zona afetada.” Esses ambientes existem ao longo das diversas frações do lagamar santista-vicentino, parte estão comprometidos e merecem receber incentivos através desses projetos de compensação visando sua rehabilitação ou restauração.

A encrenca é grande e queremos criar um caminho dentro da CETESB para que seja possível, de fato, exigir todos os cálculos das ditas externalidades do projeto, ou seja, que tipo de problema pode causar aos outros, de modo que sejam previstos e formalmente registradas as formas de minimizar o problema ou compensar os danos socioecônimicos e ambientais – como os manguezais sem bosques.

É um assunto complexo e delicado, que requer diálogo com os afetados. Nosso trabalho é criar os instrumentos para que o Estado cumpra melhor sua função e crie condições reais a serem cumpridas pelos Projetos e verificadas e monitoradas pari passu pelos órgãos competentes fiscalizadores ouvindo sempre os pescadores.

O MAR 3D

Com parte do estuário e baía de Santos já dominado pelo porto preocupado na economia portuária que enxerga a água somente em duas dimensões, resta saber se aqueles que dependem da água 3D, tridimensional, poderão usufruir do local, quiçá incentivados economicamente por aqueles que resolveram ocupar essas áreas naturais. É uma troca de uma economia por outra, resta saber quando vamos colocar uma pá de cal, um limite definitivo nessa expansão geográfica, e se o setor portuário será forçado de uma vez por todas a pagar não só a conta das outras economias prejudicadas, mas a compensar ambientalmente as áreas suprimidas.

O passivo socioambiental no porto de Santos-Guarujá e Polo Petroquímico de Cubatão é imenso, e a CETESB, poderá ajudar a reverter a situação de forma paulatina dentro do processo administrativa e fora da esfera judicial. Como todo trâmite burocrático, há vícios procedimentais e uma lógica que deve ser mudada radicalmente. Paga-se muito dinheiro pra gerar pouquíssimos benefícios pra coletividade. Monitoramentos feitos pelas empresas não criam série de dados que tenham valor pra publicação científica. Os ditos Programas de Apoio a Pesca são meras migalhas cosméticas que nada estruturam o setor. Não acredita ? Então navegue ao longo das tantas comunidades e comprove com os próprios olhos a precariedade das estruturas de apoio a pesca, parte delas, que receberam “incentivo” das empresas por exigência da CETESB. É vergonhoso e até humilhante, mas antes de mais nada, revoltante.

FABRÍCIO GANDINI é oceanógrafo com mestrado em Oceanografia Pesqueira pela FURG, pioneira em ciências do mar no país, há 15 anos é pesquisador ativo em fóruns de formulação de políticas públicas para recursos naturais comuns e atualmente diretor-presidente do Instituto MARAMAR para a Gestão Responsável dos Ambientes Costeiros e Marinhos. Cozinha peixes frescos nas horas vagas.

Confira mais sobre esse assunto na matéria realizada pela revista La Jornada Del Campo.

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